domingo, 22 de abril de 2007

Mentiras no casamento

Cara leitora, a outra,

Resolvi publicar um trecho de nossa correspondência. Aproveito para perguntar por que você não a iniciou nos comentários do blog. Assim, outras pessoas poderiam participar da conversa, principalmente agora que aprendi a comentar os comentários do leitor dentro da “caixinha” destinada a isso. Bem... já que não foi lá, que seja aqui. Você começou assim:

Será que é possível ter 'conversas' como as nossas numa relação amorosa?? Eu sou muito mais honesta sobre certas coisas com amigos do que com meu marido..... Acho que é porque as conseqüências não são as mesmas. Com você, não tenho medo do que volta para mim. Claro, falo da relação amorosa 'oficial' de namoro ou casamento, com direito ao sexo (rsrs). Porque uma relação amorosa, nos temos, né não??

Sim, temos uma relação amorosa especial. Uma vez, fiz uma pergunta que você respondeu muito francamente, e a pergunta (o casamento mata a amizade?) e a resposta (sim, em todos os meus relacionamentos amorosos, sim) ficaram ecoando tristemente: apesar de saber que os motivos para me tornar o "amargo moralista da verdade" em que me torno cada dia mais não sejam tão nobres quanto a verdade em si, pois é a insegurança que dita lá do fundo a minha pregação, o ideal da verdade é muito bonito (estético), e o contato com ela me parece a melhor maneira de viver (ético). Portanto, ouvir de uma pessoa inteligente que amor, sexo e verdade (esta que só parece possível entre amigos) não podem coexistir, me entristece profundamente. Luiz Pinheiro gostar de citar (provavelmente do budismo) que o verdadeiro sábio não se incomoda com alguém que mente para ele. Ele lida com essa condição humana: todos mentimos. Você me parece mais madura do que eu, mais sábia. Você encara a relação amorosa"oficial" quase que como um mal necessário. Putz, mas é foda ter que fazer sexo e amor como um mal necessário. Ou melhor, não é foda, pois foda é coisa boa.

Será que sou mais sábia? Duvido. Acho que sou mais realista que você. A sua ideia de um relacionamento 'oficial' é tão romântica, idealista. Claro que sempre se pode tentar chegar ao que se quer, atingir o ideal, mas sem realismo, isso gira insatisfação (ou depressão!!). Também, não é que não tenha amizade e companheirismo com meu marido, temos sim. Mas é diferente da amizade com amigos. Há tantos papeis diferentes (mãe, mulher, esposa etc.), que dificilmente as coisas não se misturam.

Obrigado a reconhecer o realismo de suas palavras, meu ‘romantismo’ me leva a tentar um último argumento, em vez de encerrar com seu parágrafo, o que, confesso, fiquei muito tentado a fazer. A coleção das coisas que ‘não podem ser ditas para o cônjuge’, a pessoa com quem lutamos lado a lado (“viver é perigoso”, dizia Riobaldo), essa coleção, que começa pequena mas incha pouco a pouco, azeda as nossas vidas. Já escrevi sobre isso numa das antigas colunas na Folha Online: não faz sentido sermos mais sinceros com amigos do que com o cônjuge, que deveria ser o nosso melhor amigo, pelo menos, estar entre os melhores. Não tratar o parceiro mais importante com a dignidade devida azeda as nossas vidas. Quando mentimos para alguém tão íntimo, temos que mentir em grande medida, talvez em maior medida, para nós mesmo. Isso azeda as nossas vidas: nos deprime, tira a graça de vivermos em paz com o que somos de fato. Aquilo que somos passa a nos parecer esquisito já que precisa ser escondido da pessoa com quem adormecemos. Só nos resta acabrunhar, infantilizar, afetar uma felicidade inexistente... engordar. Por que os casados engordam? Engordar é parar de cuidar de si mesmo, arriscar-se à diabete e ao ataque de coração. Ataque ao coração! Mentir é um ataque ao coração. A mentira acumulada engorda, a gordura como uma metáfora concreta da insatisfação, da falta de paz interior. A aceitação da mentira como realismo, esse tipo de senso comum que nos aconselha a esconder 'certas coisas' (na verdade, certas coisas erradas que fazemos) me parece cada vez mais questionável. Mesmo sendo fã ardoroso da psicanálise, me posiciono contra a defesa que os analistas fazem da mentira conjugal quando a justificam como escudo do sagrado direito à privacidade e à individualidade. A palavra do analista não é qualquer uma: o analisando, inseguro por definição (se não, não estaria no divã), tende a tomá-la como mandamento. O primeiro questionamento a fazer é: se não podemos dizer a verdade àquele que deveria ser o nosso melhor amigo, não seria o caso de refletirmos profundamente sobre as causas que nos mantêm num casamento empurrado com a barriga? (geralmente uma barriga cultivadamente fofa para amortecer tantos impactos que nos feririam a alma se não fossem anteparados). E, se observarmos bem, a mentira é a grande mentira, pois não é possível haver enganação, empulhação, entre duas pessoas que vivem tão intimamente. Os sinais de que as coisas vão mal aparecem na própria maneira de o outro respirar.

domingo, 15 de abril de 2007

A dor não é desejável, mas é inevitável. E pode ser útil


Sempre me incomodou o fato de que descobertas e criações humanas fundamentais, individuais ou coletivas, tenham sido alcançadas em momentos de grande sofrimento.
As guerras proporcionaram grandes descobertas: o computador de Turing, o Volks refrigerado a ar, a margarina, remédios, e progresso de países envolvidos diretamente ou adjacentes nos conflitos. Quem nunca aproveitou um limão para uma limonada não acompanhará meu argumento. Mas quem nunca?

Cervantes escreveu o livro mais famoso de todos os tempos, o provavelmente imortal Dom Quixote, na cadeia. Também Oscar Wilde e o Marquês de Sade produziram obras famosas iluminados pelo sol quadrado. Django Reinhardt reinventou o seu jeito de tocar violão depois de perder o movimento de alguns dedos da mão esquerda. E há aquele grande pianista que perdeu a mão direita na primeira guerra mundial, se não me falta a faculdade que vive me falhando, mas inspirou Ravel (além de outros compositores que queriam dar ‘emprego’ ao amigo concertista) em seu belíssimo concerto para mão esquerda: sem esta informação, a de que só a mão esquerda trabalha, apenas pela audição, não se percebe a ausência da direita. Leite tirado de pedra.

A dor é útil. Para quem sofre e para quem faz dela o seu negócio. Os últimos precisam tomar cuidado: quem causa dor a outrem pode se dar muitíssimo mal. Toda vez que aparece o nome de Vladimir Herzog, imagino o ódio dos envolvidos (pois arrependimento é pra gente desenvolvida) na sua morte e na criação do mártir, assim como o constrangimento dos descendentes ou outros que, ligados a esses criminosos de maneira perene, conheçam sua culpa. Já as igrejas que usam a culpa dos fiéis para dominá-los vêem se dando bem per seculusseculorum.

Mas, como dizia, a dor é útil para o próprio sofredor. Acho que foi Carlos Drummond quem disse que a ‘gente só aprende quando bate na porta errada’, uma metáfora para a ‘gente só aprende no erro’. Eu mesmo reconheço, com todas as letras mal traçadas por uma mão crispada de dor, mesmo no computador, que aprendi grandes lições pelo sofrimento. Aprendi quiném cachorro: apanhando. Wilde, famoso aforista, disse ‘experiência é o nome que a gente dá aos próprios erros’. Claro que há outras maneiras de aprender, a principal delas pela admiração que outros nos causam, mas esse seria assunto para outro artigo (também de luxo, como este), relacionado à educação, à amizade e à leitura.

Depressão deve ser o único tipo de dor que não produz descobertas, invenções e auto-conhecimento; aprendizado, enfim. O deprimido não sofre tanto quanto o ansioso, o aflito, o desesperado mas, em compensação, se prostra. O cara deita de barriga pra cima e olha pro teto. E não vê mais nada além do teto. Pára de pensar. Freud não quis tomar remédios que pudessem entorpecer seu pensamento nem frente à dor do câncer. Quando a dor foi insuportável, ele preferiu morrer. Freud preferiu a morte que a impossibilidade de continuar pensando, aprendendo.

A dor é tão fecunda que muitas vezes caímos na tentação de procurá-la, de produzi-la artificialmente para aproveitar seus benefícios. Casos extremos disso são os crentes que se flagelam e os que se martirizam. Talvez os homens-bombas sejam convencidos a cometer seu ato extremo por manipuladores habilíssimos que mostram como o sofrimento, na vida, é eficaz. E “já que é assim na vida”, devem insinuar, sibilantes, “é o melhor caminho também para a morte, para o paraíso”. O personagem mais dramático e fascinante de O código da Vinci é o frade albino assassino fanático da Opus Dei, que se auto flagela, é manipulado por seu suposto salvador, e não duvida de ser fundamental à obra de Deus.

Sempre tive um olho voltado para os benefícios do sofrimento, mas apenas recentemente tenho conseguido equacionar melhor a questão, e chegar a uma ‘fórmula’ simples, mais ou menos assim: a dor não é desejável, mas é inevitável e pode ser útil.

Com a ajuda de dois psicanalistas, Luz e Khir, e de textos do ‘nunca assaz louvado’ consegui vislumbrar que os princípios do prazer e da realidade, que nos guiam das profundezas, podem nos ajudar, no nível da consciência, a usar a dor produtivamente, e a descartá-la quando infértil.

Digamos: um cara trabalha num lugar que o faz sofrer muito, onde um chefe o atormenta e colegas o maldizem: esse cara só deve ficar nessa situação se precisar (princípio de realidade), caso não tenha alternativa melhor pra ganhar seu pão. E, mesmo assim, deveria procurar um trabalho onde se sinta mais feliz e menos perseguido (princípio do prazer). Porém, enquanto não puder sair dessa situação, a melhor coisa a fazer é transformar seu sofrimento em aprendizado, experiência, auto-conhecimento.

Pode ocorrer, por exemplo, de ele colaborar inadvertidamente para o stress (quem escreve estresse só entra na minha casa de cassetete) ao responsabilizar unicamente a situação externa por todo o sofrimento, sem reconhecer a própria participação no processo. Se ele percebe isso, ou se aprende a ser mais diplomático com seu meio, ele se sente aliviado porque ganhou algo. É um alívio verdadeiro, aquele que advém do aprendizado sobre si mesmo, sobre o outro ou sobre a realidade externa.

Mas é aí que mora o perigo. Ele pode começar a achar que a dor, o emprego e o casamento ruins – ou outras cruzes da vida – sejam bons em si. Que o bem advém das situações dolorosas e não de seu exercício de aprendizado, de sua capacidade de pensar.

domingo, 1 de abril de 2007

Minha seleçao brasileira preferida de todos os tempos só com quem vi jogar pela TV

No século passado, o vinte, aprendemos muito com as mulheres: descobrimos e passamos a assumir e amar o nosso 'lado feminino'. Hoje, as coisas mudaram, como sempre mudam, e está na hora de as mulheres aprenderem algumas coisas com os homens. Por exemplo, a ter um senso moral menos aberto, mais estrito (não estreito), menos 'tergiversante' e... a amar o futebol.

Taffarel; Carlos Alberto, Aldair, Lúcio e Roberto Carlos; Dunga, Clodoaldo e Rivelino; Tostão, Romário e Pelé: homens comuns que se transformaram em heróis imortais e nos ajudaram, como ninguém, a superar a depressão cultural portuguesa e escrava.

Preciso fazer justiça à emoção gravada em minha memória por outros além dos meus onze primeiros. Felipão, meu técnico preferido, o mais emocionante e emocionado que já vi no banco brasileiro e, ainda assim, esperto, matreiro, racional 'professor'. O mais corajoso: não se intimida com os semi-deuses em que os homens comuns imaginam se tornar quando ficam (apenas) muito famosos.

Minha memória emocional não tem uma seleção reserva completa, outros onze. Mas reserva sentimentos de glória e alegria para outros como Branco, o herói contra a Holanda em 94; Gérson dos lançamentos artísticos; Jairzinho, que Pelé não se cansa de creditar como fundamental para o título de 70; Marcos, o santo guerreiro do gol no Japão coreano; Ronaldo, o maior personagem trágico de filme norte-americano do futebol brasileiro, talvez de toda a nossa história; Bebeto, o Sancho Pança de Romário; Ronaldinho Gaúcho, do meu desencanto em 2006, mas também do gol de falta espiritual contra a Inglaterra em 2002, quando ganhamos aquela copa; Rivaldo, a luz de 2002, que a depressão apagou.

"Eis a caridade que nos faz o escrete: dá ao roto, ao esfarrapado, uma sensação de onipotência", escreveu Nelson Rodrigues na crônica O escrete precisa de amor, republicada no livro A pátria de chuteiras (Cia das Letras, 1994, p. 110-111).

E essa não é a sua crônica constitucional, aquela que todo brasileiro precisa ler (mesmo livro, p. 79-82), em que mostra como Garrincha acabou, em 62, com o nosso complexo de vira-lata . Essa crônica, O escrete de loucos, deveria ser mais obrigatória em nossas escolas que o Hino Nacional.

A glória de nosso futebol nos salvou e continua a nos salvar do gene da depressão eterna, de alma lusitana e de banzo de navio negreiro. Todo nosso orgulho perante o mundo emerge dos pés de nossos heróis no esporte mais importante de todos; de certa maneira, a mais importante atividade humana, a mais valorizada, vista e comentada, adorada pela maioria no planeta.