domingo, 15 de abril de 2007

A dor não é desejável, mas é inevitável. E pode ser útil


Sempre me incomodou o fato de que descobertas e criações humanas fundamentais, individuais ou coletivas, tenham sido alcançadas em momentos de grande sofrimento.
As guerras proporcionaram grandes descobertas: o computador de Turing, o Volks refrigerado a ar, a margarina, remédios, e progresso de países envolvidos diretamente ou adjacentes nos conflitos. Quem nunca aproveitou um limão para uma limonada não acompanhará meu argumento. Mas quem nunca?

Cervantes escreveu o livro mais famoso de todos os tempos, o provavelmente imortal Dom Quixote, na cadeia. Também Oscar Wilde e o Marquês de Sade produziram obras famosas iluminados pelo sol quadrado. Django Reinhardt reinventou o seu jeito de tocar violão depois de perder o movimento de alguns dedos da mão esquerda. E há aquele grande pianista que perdeu a mão direita na primeira guerra mundial, se não me falta a faculdade que vive me falhando, mas inspirou Ravel (além de outros compositores que queriam dar ‘emprego’ ao amigo concertista) em seu belíssimo concerto para mão esquerda: sem esta informação, a de que só a mão esquerda trabalha, apenas pela audição, não se percebe a ausência da direita. Leite tirado de pedra.

A dor é útil. Para quem sofre e para quem faz dela o seu negócio. Os últimos precisam tomar cuidado: quem causa dor a outrem pode se dar muitíssimo mal. Toda vez que aparece o nome de Vladimir Herzog, imagino o ódio dos envolvidos (pois arrependimento é pra gente desenvolvida) na sua morte e na criação do mártir, assim como o constrangimento dos descendentes ou outros que, ligados a esses criminosos de maneira perene, conheçam sua culpa. Já as igrejas que usam a culpa dos fiéis para dominá-los vêem se dando bem per seculusseculorum.

Mas, como dizia, a dor é útil para o próprio sofredor. Acho que foi Carlos Drummond quem disse que a ‘gente só aprende quando bate na porta errada’, uma metáfora para a ‘gente só aprende no erro’. Eu mesmo reconheço, com todas as letras mal traçadas por uma mão crispada de dor, mesmo no computador, que aprendi grandes lições pelo sofrimento. Aprendi quiném cachorro: apanhando. Wilde, famoso aforista, disse ‘experiência é o nome que a gente dá aos próprios erros’. Claro que há outras maneiras de aprender, a principal delas pela admiração que outros nos causam, mas esse seria assunto para outro artigo (também de luxo, como este), relacionado à educação, à amizade e à leitura.

Depressão deve ser o único tipo de dor que não produz descobertas, invenções e auto-conhecimento; aprendizado, enfim. O deprimido não sofre tanto quanto o ansioso, o aflito, o desesperado mas, em compensação, se prostra. O cara deita de barriga pra cima e olha pro teto. E não vê mais nada além do teto. Pára de pensar. Freud não quis tomar remédios que pudessem entorpecer seu pensamento nem frente à dor do câncer. Quando a dor foi insuportável, ele preferiu morrer. Freud preferiu a morte que a impossibilidade de continuar pensando, aprendendo.

A dor é tão fecunda que muitas vezes caímos na tentação de procurá-la, de produzi-la artificialmente para aproveitar seus benefícios. Casos extremos disso são os crentes que se flagelam e os que se martirizam. Talvez os homens-bombas sejam convencidos a cometer seu ato extremo por manipuladores habilíssimos que mostram como o sofrimento, na vida, é eficaz. E “já que é assim na vida”, devem insinuar, sibilantes, “é o melhor caminho também para a morte, para o paraíso”. O personagem mais dramático e fascinante de O código da Vinci é o frade albino assassino fanático da Opus Dei, que se auto flagela, é manipulado por seu suposto salvador, e não duvida de ser fundamental à obra de Deus.

Sempre tive um olho voltado para os benefícios do sofrimento, mas apenas recentemente tenho conseguido equacionar melhor a questão, e chegar a uma ‘fórmula’ simples, mais ou menos assim: a dor não é desejável, mas é inevitável e pode ser útil.

Com a ajuda de dois psicanalistas, Luz e Khir, e de textos do ‘nunca assaz louvado’ consegui vislumbrar que os princípios do prazer e da realidade, que nos guiam das profundezas, podem nos ajudar, no nível da consciência, a usar a dor produtivamente, e a descartá-la quando infértil.

Digamos: um cara trabalha num lugar que o faz sofrer muito, onde um chefe o atormenta e colegas o maldizem: esse cara só deve ficar nessa situação se precisar (princípio de realidade), caso não tenha alternativa melhor pra ganhar seu pão. E, mesmo assim, deveria procurar um trabalho onde se sinta mais feliz e menos perseguido (princípio do prazer). Porém, enquanto não puder sair dessa situação, a melhor coisa a fazer é transformar seu sofrimento em aprendizado, experiência, auto-conhecimento.

Pode ocorrer, por exemplo, de ele colaborar inadvertidamente para o stress (quem escreve estresse só entra na minha casa de cassetete) ao responsabilizar unicamente a situação externa por todo o sofrimento, sem reconhecer a própria participação no processo. Se ele percebe isso, ou se aprende a ser mais diplomático com seu meio, ele se sente aliviado porque ganhou algo. É um alívio verdadeiro, aquele que advém do aprendizado sobre si mesmo, sobre o outro ou sobre a realidade externa.

Mas é aí que mora o perigo. Ele pode começar a achar que a dor, o emprego e o casamento ruins – ou outras cruzes da vida – sejam bons em si. Que o bem advém das situações dolorosas e não de seu exercício de aprendizado, de sua capacidade de pensar.

2 comentários:

Unknown disse...

é isso aí: princípios da realidade e do prazer...acho que a depressão só ensina depois que se sai dela...
um grande abraço!

Hermelino Mantovani disse...

A depressão só ensina o depois que se sai dela. Gostei, mas mesmo concordando, pergunto: ensina o quê?