"O amor é prepotente: sempre acreditamos poder transformar e corrigir o objeto amado", diz Contardo Calligaris no seu artigo My fair lady, sobre o musical famoso, em cartaz em São Paulo.
Atualmente posso copiar Contardo descaradamente, como já tive vontade de fazer na antiga coluna na Folha Online, pois em blogs, linkar e copiar parecem mais fair (correto) do que numa coluna. Mas a gente copia e linka o tempo todo, na vida e na arte. Com um pouco de elegância e criatividade, tudo bem. Como na seqüência Pigmalião, tragédia grega; Pigmalião, peça de Bernard Shaw; Pigmalião, versão cinematográfica da peça, de 1938; My fair lady, o musical; e My fair lady, o filme musical homônimo, ganhador de oito Oscars em 1962.
Contardo diz que a história de My fair lady "pega" fundo nele. Em mim também. E no meu aluno-amigo, Pedreg, o Grande, que me enviou o texto de Contardo, e que passa metade de sua aula semanal de uma hora e meia conversando comigo sobre relacionamentos amorosos. Nossas aulas são sessões de música, terapia e filosofia. Para ambos. No seu último aniversário, dei-lhe de presente o filme octa-oscarizado.
Falando em Oscar, Ennio Morricone finalmente ganhou o seu em 2007, pelo conjunto da obra, o que foi finalmente fair (justo) para um dos maiores compositores de trilhas sonoras vivos. Seu Oscar valoriza o prêmio que ganhei pela trilha sonora de A dama do Cine Shanghai concorrendo com a sua para Time of destiny. Sou bom pra caramba, pouca gente sabe, que se vai faiz?, e não me deprime nem um pouco contar vantagens de meus pequenos feitos, já que ninguém conta. A crítica ainda não foi fair (objetiva ou generosa) para comigo, ainda que por ignorância e devido à minha total falta de jeitinho para me promover. Sou prepontente, antipático, metido a besta, sempre que menciono minha pequenas glórias e vivo fazendo isso, insinuando as minhas conquistas. É muita vontade de ser famoso, o que é feio, mas acho mais feio (e deprimente) que minhas conquistas não promovam outras conquistas, nem que fossem admirações diminuídas por minha deselegância ao insinuá-las.
Mas voltando, e copiando longamente Contardo: "My fair lady é um clássico, que encena fantasias que habitam a mente de todos nós. A história é conhecida: o professor Higgins encontra uma pobre vendedora de flores, estigmatizada por suas maneiras, sua gramática e sua pronúncia. Ele aposta que a transformará em uma 'lady' com um curso intensivo de poucos meses. O mesmo professor, celibatário rabugento, aproveitará o curso para aprender algo sobre sentimentos (...) My fair lady é uma Cinderela em que acontece uma troca extraordinária entre um homem e uma mulher, cada um transformando o outro. Voltemos ao mito que inspirou Bernard Shaw. Pigmalião era um escultor que se apaixonou perdidamente pela figura feminina que ele mesmo tinha esculpido. Afrodite ouviu suas súplicas e deu vida à estátua. Não se sabe se Pigmalião ficou feliz com essa dádiva ou se, ao longo do tempo, ele lamentou a época em que sua amada não tinha vida própria. Detalhe inquietante: Pigmalião criou a estátua e se apaixonou por ela porque desgostava das mulheres reais, que lhe pareciam indecentes (animadas por desejos autônomos). A psicologia clínica usa o termo "pigmalionismo" para designar 1) a conduta erótica, um pouco estranha, de quem se apaixona por estátuas e as deseja; 2) num sentido mais amplo, a paixão pedagógica e erótica do sujeito que sonha com um objeto de amor e desejo que ele mesmo moldaria. A psicologia experimental, nas últimas décadas, confirmou e debateu o 'efeito Pigmalião': quando os professores esperam um grande progresso de seus alunos, os alunos progridem duas vezes mais rápido. O desempenho do aluno é proporcional às expectativas do professor. Aos 20 anos, leitor assíduo de Ronald Laing e devoto da antipsiquiatria italiana, eu devaneava que, um dia, encontraria uma jovem esquizofrênica e catatônica: pela mágica de meus cuidados, eu lhe devolveria a fala e a vida. No processo, eu me apaixonaria por ela, e ela por mim; viveríamos felizes para sempre. Portanto, confesso: já fui pigmalionista e já apostei na força curativa do 'efeito Pigmalião'. Mas a história de Pigmalião não se aplica apenas em casos de extremismo pedagógico e terapêutico. Qualquer um de nós desejou e deseja transformar o objeto amado. O amor é prepotente: idealizamos o outro e acreditamos firmemente que ele ou ela se emendarão. Somos convencidos de que o outro amado carrega todas as qualidades que nossa paixão lhe atribui: elas estão escondidas, atrás de uma 'deformação' que será corrigida pela virtude de nosso amor. Com isso, o amor desafia diferenças extremas, étnicas, culturais, religiosas e sociais. Um amigo carioca, aliás, me disse uma vez, brincando, que, se não tivéssemos uma fé desmedida no poder transformador do amor, se fôssemos 'sensatos', homem só casaria com homem, e mulher com mulher. Resta que, quando escolhemos nossa parceira ou nosso parceiro apesar de diferenças que nos incomodam, e confiantes nas mudanças que virão, as chances de durar são pequenas. E grandes são as chances de que a vida em comum vire, rapidamente, um inferno. Mas é uma constatação que não inspira ninguém: o amor pensa o contrário, e esse é o mito de My fair lady. A peça de Bernard Shaw termina 'mal' (Eliza não casa com o professor Higgins). My fair lady, aparentemente, termina bem. Mas considere a última cena e, honestamente, pergunte-se: como essa história vai acabar?"
Tenho pouco a acrescentar: o amigo carioca que disse que "se não tivéssemos uma fé desmedida no poder transformador do amor, se fôssemos 'sensatos', homem só casaria com homem, e mulher com mulher" acerta a trave. Mulher não casaria nunca com mulher: elas se acham 'tudo falsa', como mostro no post anterior. Tenho pouco a acrescentar, mas um 'pouco' bem bacana. Veja:
Fair significa imparcial, além de benevolent, blameless, candid, civil, clean, courteous, decent, disinterested, frank, generous, good, honest, honorable, just, lawful, legitimate, moderate, nonpartisan, objective, open, pious, praiseworthy, principled, proper, reasonable, respectable, righteous, scrupulous, sincere, straight, temperate, trustworthy, unbiased, uncolored, uncorrupted, unprejudiced, upright, virtuous. Ou seja, nada a ver com a 'beleza física' das versões brasileira, Minha Bela Dama, e portuguesa, Minha Linda Senhora, para o título do filme. Geralmente essas versões são risíveis, mais as portuguesas do que as brasileiras, claro. Mas nesse caso, acho legal. Pois quem se torna cândido, decente, franco, generoso, desinteressado (sou muito deselegante ao usar o blog para me promover e me vingar, como se verá a seguir), honesto, honrável, justo, moderado, objetivo, aberto, piedoso, apropriado, sincero, direto, incorruptível, torna-se amável e, como conseqüência, lindo para quem o ama. Ou outro clássico, A Bela e a Fera, não seria clássico.
Uma mulher -- aliás, ligada a musicais (músicos, já afirmei alhures, podem ser profundamente ignorantes, apesar da aura especial) -- que tentei transformar com minha prepotência amorosa não adquiriu nenhuma daquelas características, mas continuou linda e desejável fisicamente. Usou sua beleza para se vingar, me traindo apesar de me amar, e sua 'imexível' deslealdade para conquistar meu rancor eterno. Ela se vingou, entre outros erros meus, de minha tentativa de tranformá-la. No que fez muito bem, me fez muito bem, aprendi como cachorro, esse o nosso link com o mundo animal, aprender apanhando. Aprendi: a gente não muda ninguém. Por isso, My fair lady não poderia dar certo fora da ficcão e do mito e, também por isso, sei responder a última pergunta de Contardo: vai dar merda.
A fala é fundamental na transformação de uma pessoa, e esse é o aspecto mais profundo da peça Pigmalião, como sabe qualquer seguidor de Freud, o fundador da cura pela fala. Contardo, psicanalista, deixou passar essa. Como sou prepotente, aponto o lapso e, deselegantemente, me aponto elegante por não apenas copiá-lo. Mr Higgins, uma espécie de linguista, acreditava que se ensinasse a inculta Eliza a falar corretamente, a ensinaria a ser fair. Só deu certo na visão hollywoodiana.
Eu tentei, não funciona. Minha semi-analfabeta demorou dois anos para reconhecer que "vou estar enviando" é deselegante e feio pra burro. E, mesmo me fazendo o bem da traição, o fez de maneira profundamente unfair (desleal).
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