domingo, 11 de março de 2007

Sermão e atestados de normalidade grátis



Querida leitora,

Não usei seu nome por razões óbvias: você preferiu escrever para o velho nederman@that.com.br em vez de postar um comentário público. Mas, usei ‘querida’...

Há muitas mulheres com problemas com as mães. Freud afirma que a relação entre a mãe e seu filho homem é um caso único, entre todos os tipos de relação. Não sei o que isso acarretaria para as filhas mulheres. Por exemplo, os analistas comentam que as mulheres têm um senso ético menos estrito que os homens, ou seja, elas tergiversariam -- se permitiriam não fazer a coisa certa, usariam de evasivas, rodeios, subterfúgios -- mais do que eles. Especulo se isto estaria relacionado com aquilo. Eles dizem, de uma maneira até que bonitinha, que "o senso ético das mulheres é mais elástico que o dos homens", comparando pessoas éticas de ambos os gêneros, claro, não uma mulher ética com um homem corrutpo ou vice-versa.

Agora, que é muito comum mulher dizer que 'mulher não é amiga de mulher' ou que 'mulher é tudo falsa', ah isso é. Pudera: se todas as mulheres que tiverem irmãos, crescerem com a impressão de que não se pode confiar totalmente na mãe, que começo de relação entre mulheres! E elas dizem também que 'homem não presta e são todos iguais'. Uau, a relação especial da mãe com o filho homem explicaria tudo isso. Ou não? Especulo.

Outra diferença é que as mulheres amadurecem mais rapidamente que os homens. É algo que posso confirmar como professor tarimbado de uns trezentos alunos crianças a cada ano. As mulheres são alunas mais maduras, mais agradáveis. Entretanto, se posso confirmar o amadurecimento mais ágil das mulheres, também aqui só posso especular que ele estaria ligado à relação especial entre a mãe e o filho homem: os homens sairiam prejudicados porque são poupados pela mãe mais que as mulheres.

Mas o importante é que, independentemente de sermos homens ou mulheres, há "conseqüências" comuns para os dois gêneros, pelo simples fatos de sermos... filhos. O texto de Freud que leio no momento, O mal estar da civilização, trata entre outras coisas, do conflito inevitável entre o amor e a agressividade que nutrimos por nossos pais -- que nos amam, mas nos proíbem de fazer tudo o que nossos instintos exigem --, conflito que dá origem ao sentimento de culpa.

Se Ele (com maiúscula, pois para mim, Freud é o Messias que os judeus ainda esperam: não o reconheceram como tal, quando caminhou entre nós, e nem depois) estiver certo, a ambivalência de seus sentimentos, querida leitora, em relação a sua mãe não vai acabar nunca. Talvez a análise e a idade nos ajudem a sofrer menos, mas escapar totalmente dessa ambivalência é coisa que nem filhos de pais amorosos e maduros conseguem. É da própria natureza da psique humana.

E é melhor que seja assim.

Se não desenvolvêssemos o sentimento de culpa, poderia ser pior: nos tornarmos psicopatas, criminosos, ou neuróticos do tipo que culpa os outros por tudo, pois não introjetou o conflito (no formato) do sentimento se culpa. Faríamos parte do grupo dos corruptos e adúlteros, ou seja, pessoas cujos instintos (de se dar bem na vida, de ter prazer) são reprimíveis apenas de fora para dentro, pelo outro, pela 'autoridade': se minha mulher não souber, tudo bem eu sair com outras; se a polícia e a imprensa não souberem, tudo bem eu desviar grana pública. O cara, por si só, não consegue se reprimir, não pode antecipar a culpa. É uma pessoa pouco desenvolvida, não entende o que seus atos podem causar e, a pior conseqüência, não pode assumir a própria vida.

Você diz que sua mãe culpa os outros o tempo todo. Tenho dois comentários sobre isso, um é especulativo, mas do outro, tenho certeza: primeiro, ela também é a filha mulher de uma mulher; segundo, ela é menos desenvolvida que você, que sofisticou-se com o chamado ‘superego’, que se constrói com o sentimento de culpa. Em tribos primitivas, quando alguma coisa dá errado, ou seja, quando o sujeito passa por um infortúnio, ele espanca o fetiche (um tipo de 'santinho', de imagem sagrada). A culpa está do lado de fora, é do fetiche! Faz como as mulheres que deixam o Santo Antonio de cabeça para baixo enquanto não arranjam casamento, não é? A contrapartida disso é que a repressão (sã) também só vem de fora.

Claro que sentimento de culpa exagerado é fonte de sofrimento exagerado. Há até um apelido que os analistas usam para esse nível de auto-repressão: superego cruel. A boa auto-repressão, o sentimento de culpa num nível legal é saudável, é civilizado, é a base da felicidade possível.

Portanto, se entendi bem o que você e Freud escreveram, tenho uma boa notícia. Você é normal por se sentir assim: "às vezes sinto indiferença por tantas atitudes dela, que me parecem dispensáveis. Sinto raiva e desprezo também. E sinto amor e desejo de amá-la. Sinto vontade de dizer-lhe: pára pra olhar quanta dor você causa à tua volta! Tenta aproveitar os teus últimos anos de vida! Toma remédio pros nervos. Fica numa boa, como diz o teu neto. Mas sei que ela vai me mandar a merda!”

Se tiver algum amigo que precise de atestado de normalidade por se sentir como você, não se avexe de mandá-lo escrever para mim.

Beijo do Hermelino

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